Pela des-islamização das consciências evangélicas

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 David Raimundo

Não querendo fazer uma simplificação exagerada, penso que podemos afirmar que o islamismo é a religião do livro. A fé islâmica baseia-se na crença de que Alá revelou verbalmente o Alcorão ao profeta Maomé. Como tal, o Alcorão original, escrito em árabe, é encarado como revelação direta de Deus, literal e inerrante (ainda que este termo possa não fazer parte do léxico islâmico). Traduzir o Alcorão é problemático, devido às características da língua árabe e ao factor humano que intervém na tradução. Daí que o Alcorão noutras línguas não é considerado uma tradução, mas sim uma interpretação, e todo o muçulmano é desafiado a aprender árabe para ter acesso à revelação original.

É interessante notar o que o Alcorão diz de si mesmo. Eis alguns exemplos:

“Aqui está um livro cujos versos são perfeitos na sua forma e no seu conteúdo e são claramente apresentados por alguém que tudo sabe e tudo conhece” (Q. 2:1)

“Se o Alcorão viesse de qualquer outra fonte para além de Deus, encontraríamos nele muitas contradições.” 

“Ele (o Alcorão) desceu daquele é o Senhor de todos os domínios da existência, vais tu negar esta oferta?” (Q. 36: 80-82)

“Diz: ‘Se os homens se juntarem para tentar produzir algo similar ao Corão, eles não conseguirão produzir nada similar, mesmo que se ajudem mutuamente uns aos outros’.” (Q. 17:88)

“Se estiver em dúvida acerca daquilo que foi enviado ao nosso servo (o profeta), então, produza um capítulo similar, e convide qualquer um a ajudá-lo, qualquer um para além de Deus, se acha que está certo. E se não o conseguir produzir, e nunca irá consegui-lo, então tema o Fogo.”  (Q. 2:23-24)

“Não há dúvida de que o Alcorão é um livro poderoso (para guiar). Nenhum tipo de falsidade pode tocar nele, quer venha pela frente dele ou por trás dele; ele desceu daquele que é Sábio, o Louvável.” (Q:41:42)

(Traduções livres a partir de versão inglesa.)

Daqui se entende que a crença islâmica assenta num livro que é absoluto, auto-contido, auto-suficiente e cuja autoridade é sustentada naquilo que esse livro diz de si mesmo. Não querendo tecer afirmações injustas a partir de um conhecimento ínfimo da fé islâmica, arrisco dizer que essa fé é dirigida, primordialmente, para o livro. O Alcorão é o objecto de fé dos islâmicos, é a autoridade suprema no que diz respeito à fé islâmica e funciona como uma espécie de mediador entre Alá e os homens.

Ora o cristianismo não é a religião do livro. Pelo menos não o é no mesmo sentido que o islamismo. (Eu até costumo dizer que o cristianismo não é religião, porque entendo religião como a tentativa dos homens chegarem a Deus, e vejo no cristianismo o processo inverso: Deus a chegar aos homens. Mas passemos adiante). O cristianismo é a religião de Cristo: a fé cristã é dirigida para uma Pessoa, Jesus Cristo. Ele é o nosso ‘objecto’ de fé, a autoridade suprema e o mediador entre Deus e os homens.

Sim, no cristianismo há também um livro que desempenha um papel fundamental para a fé dos cristãos. Mas ainda que não houvesse livro, havia Evangelho para ser proclamado (tal como na Igreja Primitiva havia uma mensagem para proclamar mesmo que ainda não tivesse sido escrito o Novo Testamento). Ainda que não houvesse livro, havia a pessoa e a obra de Jesus Cristo para ser conhecida, para ser apresentada à humanidade.

No cristianismo podemos partir do livro, mas não ficamos pelo livro. A Bíblia conduz-nos ao conhecimento de uma Pessoa que transcende tudo aquilo que está registado a seu respeito. Uma Pessoa que salta das páginas bíblicas para ganhar vida, expressão e significado nas nossas próprias vidas.

No islamismo acredita-se que a grande intervenção de Deus na história, no tempo e no espaço, foi a revelação do Alcorão a Maomé. Deus intervém na história para dar um livro à humanidade. No cristianismo acredita-se que a grande intervenção de Deus na história, no tempo e no espaço, foi a sua encarnação em Jesus Cristo. Deus intervém na história para se dar a si mesmo à humanidade.

Creio que muitos cristãos têm uma abordagem à Bíblia semelhante àquela que os islâmicos têm ao Alcorão. Percebo que essa tendência é crescente em alguns meios evangélicos dentro e fora de Portugal. Considero que essa tendência é equivocada, corre o risco de fazer da Bíblia um ídolo, e, assim, diminuir o seu valor. Corre também o risco de limitar o nosso conhecimento daquele para quem a Bíblia aponta.

No outro dia li um comentário onde se afirmava que foi Jesus quem escreveu o Génesis, não Moisés. Moisés teria sido apenas um canal, um instrumento humano que Deus usou para escrever o seu livro. Bom, há diversas doutrinas da inspiração da Bíblia e cada um é livre para acreditar naquelas que quiser, consoante a sua consciência ditar. Eu não acredito que foi Jesus quem escreveu o Génesis. Mas vou mais longe: eu acredito que acreditar que foi Jesus que escreveu o Génesis nos afasta da verdade.

A propósito da Bíblia, da sua natureza e do seu papel, deixo algumas considerações que, no seu conjunto, transmitem uma abordagem à Bíblia que me parece mais saudável, mais sensata e mais… bíblica:

1. Ouçamos o que diz o N. T. Wright: “Podemos até assumir (num sentido que eu admito ser limitado) que não existe uma doutrina bíblica da Autoridade da Bíblia. Na maior parte do tempo, a Bíblia está muito mais ocupada a tratar de uma série de outros assuntos do que a falar acerca de si mesma. Claro que há algumas passagens-chave, especialmente em momentos de transição como 2 Timóteo ou 2 Pedro, nos quais os escritores procuram que a igreja das gerações seguintes esteja bem fundada e alicerçada. É precisamente nesses momentos que surgem afirmações relativas ao papel da escritura na vida da igreja. Mas muitas vezes essa doutrina tem de ser inferida. Pode muito bem ser possível inferir essa doutrina, mas não é aí que Isaías e Paulo (por exemplo) querem chegar. Nem é disso, em geral, que Jesus fala nos evangelhos.”

Dito de outro modo, a Bíblia não se defende a si mesma. A Bíblia não tece afirmações de si mesma semelhantes àquelas que encontramos no Alcorão. Talvez possamos dizer que, desse ponto de vista, a Bíblia é um livro mais frágil, mais humilde e mais complexo. Para mim, essa aparente fragilidade da Bíblia é bela e não devemos escondê-la debaixo das nossas doutrinas humanas, debaixo dos nossos ins (inspirada, infalível, inerrante…).

2. Mesmo que nos esforcemos por inferir uma doutrina bíblica acerca de si mesma, mesmo que tentemos dissecar todos os textos bíblicos em busca de afirmações fechadas e taxativas sobre a sua autoridade, temos de decidir se é nela que queremos depositar a nossa fé, à semelhança do que se faz no Islão com o Alcorão. É legítimo. Mas será esse o propósito de Deus? Unir-nos em torno de um livro? Ou, em última análise, o propósito será unir-nos em torno da Pessoa para quem esse livro aponta? Peço desculpa por quase introduzir aqui uma dicotomia Bíblia/Cristo que não corresponde, de todo, à minha cosmovisão nem àquilo que pretendo alcançar com este texto. Mas há que vincar este ponto: a Bíblia não é Deus. Cristo é.

3. Aos cristãos é colocado um problema que, segundo penso saber, os muçulmanos não enfrentam: o problema do cânone. O Alcorão é um livro. A Bíblia é uma colecção de livros com autores diferentes (a não ser que acreditemos que Jesus os escreveu a todos… pode ter sido essa tarefa que o ocupou entre os 12 e os 30 anos). A certa altura começaram a proliferar os livros em circulação no meio cristão e houve necessidade de decidir quais deveriam ser considerados escrituras sagradas. Foi estabelecido um critério para fazer a peneira e foram formados os cânones. Ora este é um processo humano. Podemos confiar que os nossos irmãos cristãos que tiveram em mãos esta tarefa adoptaram um critério rigoroso. Podemos até acreditar que esses irmãos foram divinamente inspirados para executar essa tarefa, tendo ela sido cumprida sem mácula, sem qualquer erro. Mas esta crença não tem fundamento. É, a meu ver, uma crença desprovida de suporte. Onde é que eu quero chegar? Bom, acredito que os livros que hoje formam as nossas Bíblias são bons, são benignos, são valiosos e aptos para nos ensinar e conduzir a um maior conhecimento de Cristo. Mas não colocaria as minhas mãos no fogo pelo cânone. Isto é, não dou por adquirido que algum livro que tenha passado na peneira não devesse ter ficado retido. E que algum livro que tenha ficado de fora não devesse ter sido incluído. Sei que esta perspectiva não será consensual e que deve trazer desconforto a muitos cristãos protestantes. Mas ao longo da história outros cristãos têm tido posição idêntica. São conhecidas as dúvidas de Martinho Lutero quanto ao cânone bíblico. Dizia ele: “Cristo é o Mestre, as Escrituras são apenas o servo. A verdadeira prova a submeter todos os Livros é ver se eles operam a vontade de Cristo ou não. Nenhum Livro que não prega Cristo pode ser apostólico, muito embora sejam Pedro ou Paulo seu autor. E nenhum Livro que prega a Cristo pode deixar de ser apostólico, sejam seus autores Judas, Ananias, Pilatos ou Herodes.”

4. Uma forma saudável de encarar a Bíblia é perceber que nas suas páginas há um diálogo para o qual somos convidados. Há um diálogo entre os homens e Deus. Homens diferentes, com diferentes perspectivas sobre a vida, com diferentes perspectivas sobre Deus, com culturas diferentes. E é como se a Bíblia convidasse toda a humanidade para dentro desse diálogo, um diálogo que encontra a sua resolução na vida, nas palavras, na obra de Jesus Cristo. Levando esta perspectiva um pouco mais longe, talvez possamos aceitar que na Bíblia há diferentes vozes a falar acerca de Deus e que essas vozes nem sempre estão de acordo. Esta é uma perspectiva proposta por Brad Jersak neste artigoque recomendo.

5. Outra forma saudável de encarar a Bíblia é percebê-la como o relato dos primeiros actos de uma peça na qual a Igreja é chamada a executar o acto seguinte. Esta é uma comparação elaborada pelo N. T. Wright na sua tentativa de explicar o que significa dizer que a Bíblia tem autoridade:

“Suponhamos que existe uma peça de Shakespeare cujo quinto acto se perdeu. Os primeiros quatro actos fornecem-nos uma caracterização tão rica, um enredo com um crescendo tão entusiasmante, que a opinião geral é que a peça tem de ser encenada. No entanto, parece impróprio escrever um quinto acto definitivo: iria congelar a peça dando-lhe um formato definido e atribuir a Shakespeare a responsabilidade por um trabalho que não era realmente dele. Talvez nos parecesse que a melhor coisa a fazer era dar as pontos-chave a actores que fossem altamente treinados e com sensibilidade e experiência em peças de Shakespeare, que poderiam mergulhar nos primeiros quatros actos, na língua e na cultura de Shakespeare e do seu tempo, e a quem depois seria pedido que desenvolvessem um quinto acto por si próprios. 

Consideremos o resultado. Os primeiros quatro actos, originais, seriam sem dúvida a autoridade para a tarefa em mãos. Isto é, qualquer pessoa poderia opor-se à nova improvisação tendo por base que este ou aquele personagem estava agora a comportar-se de forma inconsistente, ou que este ou aquele sub-plot ou tema, esboçado anteriormente, não estava a atingir a sua resolução adequada. Esta ‘autoridade’ dos quatro primeiros actos não consistiria em ordens implícitas segundo as quais os autores teriam de repetir as primeiras partes da peça vez após vez. Consistiria sim no facto de se tratar de um drama ainda não terminado, que continha o seu próprio ímpeto, o seu próprio movimento para diante, que exigia uma conclusão apropriada e requeria da parte dos actores uma participação responsável na história, de modo a que se entendesse, primeiro, como é que os assuntos da peça poderiam ser adequadamente relacionados, e em seguida se colocasse esse entendimento em prática falando e representando tanto com inovação como com consistência.

Podemos levar este modelo ainda mais longe; ele oferece de facto muitas possibilidades. Entre as aplicações mais detalhadas que este modelo torna possível está a possibilidade de ver os cinco actos da seguinte forma: (1) Criação; (2) Queda; (3) Israel; (4) Jesus. O Novo Testamento iria então formar a primeira cena do quinto acto, dando-nos ainda pistas de como a história irá terminar. A Igreja estaria então sob a ‘Autoridade’ da história já existente, sendo-lhe pedido que oferecesse algo que reside entre uma improvisação e uma performance real do acto final. (…)

6 . E a verdade?

A verdade está na cozinha a lavar a loiça.

Não consigo precisar se é assim que o livro ‘A Cabana’ apresenta o conceito de verdade. É algo deste género. A certa altura, encontramos o personagem principal do livro a perguntar a Deus-Pai o que é a verdade e este responde-lhe que a Verdade está ali dentro a fazer algo (penso que na cozinha a lavar a loiça). Deus-Pai está a referir-se a Jesus, que naquele momento da história estaria noutra divisão da casa a executar alguma tarefa doméstica. Esta explicação, simples e bíblica, encontrou eco no meu coração.

Muitos cristãos não aceitam que sejam colocadas em causa as suas doutrinas acerca da Bíblia por medo de ceder a um relativismo que lhes parece uma espécie de buraco negro. A Bíblia é vista como verdade absoluta, inquestionável, infalível em todos os sentidos do termo. Colocar em causa esses pressupostos, entrar em diálogo com a Bíblia e chegar até a questioná-la, é visto como um exercício de dialética maligna que faz tremer a rocha onde os cristãos fixam os seus pés. Eu não vejo a coisa assim. No mundo pós-moderno em que vivemos, sinto-me livre para afirmar que há muito de relativo nas verdades que produzimos e para afirmar que a Verdade Absoluta é comunicada, essencialmente, de forma relacional. Para além disso, a rocha onde fixo os meus pés não é a Bíblia, é Jesus Cristo, aquele a quem a Bíblia conduz.

Se Deus encarnou e andou entre os homens e com eles lidou, ensinou e a eles demonstrou Graça, Amor, Sabedoria e, por vezes, Repreensão, e se Deus morreu numa cruz e ao terceiro dia ressuscitou vencendo a morte e consumando o plano de Deus, esta é a verdadeira base do cristianismo. Cristo encarnado, morto e ressurrecto é o que me faz crer em Deus. A Bíblia é importante para a minha fé, mas o centro da minha fé é a encarnação, morte e ressurreição de Cristo como eventos concretos que aconteceram na história, no tempo e no espaço. A Verdade de Deus é expressa de uma forma muito mais concreta, profunda, definitiva do que em papel e em letras. A Verdade de Deus vem em carne e osso. Vem em sangue derramado. Vem em palavras sábias e numa atitude constante de compaixão que abraça de forma inclusiva todos os que a Ele apelam.

Portanto, posto isto, fica lançado o meu repto: des-islamizemos as nossas abordagens.

A Bíblia é uma bússola preciosa que nos conduz a porto seguro. O porto seguro é Cristo.

 

 

Fonte: Dear Sir, I Am.

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